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A Arte da Prudência-B.K.S. Iyengar

Foto do escritor: Elaine MoreliElaine Moreli

"Ensinar ioga é muito simples, mas não o é ensinar ioga do jeito certo."


Muitos livros de ioga descrevem as técnicas especiais de limpeza conhecidas como kriyās. Mas se você ler cuidadosamente o Hatha Yoga Pradipika, perceberá que esses exercícios são uma terapia, não uma parte do ioga. Os kriyās são aplicados quando as doenças são incuráveis por outros métodos, mas muitos outros meios devem ser usados antes que medidas drásticas sejam adotadas, pois não são para todo mundo.

A ciência médica moderna também adota medidas drásticas. A cortisona é uma droga drástica. Se tudo o mais falhar, dá-se cortisona. Da mesma maneira, nos tempos antigos, quando outros métodos falhavam, aplicava-se um tratamento drástico com a adoção dos kriyās. Todavia, dizia-se que não deviam ser usados por uma pessoa sadia.


O MESMO TEXTO DIZ que os efeitos advindos dos kriyās também são obtidos com os àsanas e pranayamas. Hoje, a maioria das pessoas pensa que hatha-ioga significa kriyās, mas isso não é verdade. Hatha-ioga consiste em àsanas, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi. Os kriyās são outra coisa, e destinam-se a pessoas com doenças graves.

Algumas pessoas limpam as passagens internas do corpo usando água, fio ou um pano, segundo os kriyās conhecidos como jala-neti, sutra-neti ou dhauti. Mas faço prana-neti, ou limpeza com a respiração, nos pranayamas. Por que deveria eu inserir elementos externos quando a própria natureza proporciona o fio da respiração? Portanto, digo que sutra-neti, jala-neti e dhauti não são necessários [...]

Se você quer conferir, leia o Capítulo 2, 21, do Hatha Yoga Pradipika.


Os àsanas também devem ser usados com a devida cautela, levando em conta o estado físico do praticante. Por exemplo, quando você levanta os braços, exerce pressão direta sobre o coração. Assim, pessoas com problemas cardíacos devem evitar as posturas com braços erguidos. O momento em que você levanta os braços representa um esforço para o coração, e por isso não ensinamos essas posturas para esses alunos, já que agravariam o problema em vez de serem úteis.

Para mim, é muito difícil explicar aos ocidentais a diferença entre exercício estimulante e exercício irritativo. Vejamos o treino da corrida leve, por exemplo. Diz a ciência médica que estimula o coração. Mas é preciso estabelecer a diferença entre irritar e estimular. Com a corrida, o ritmo cardíaco aumenta, mas isso não significa que o coração está sendo estimulado. Estimular significa energizar ou revigorar. Exercícios também podem ser irritativos ou desgastantes. Na corrida leve, fazer o coração bater mais depressa irrita o músculo cardíaco.

No ioga fazemos flexões para trás, que são mais árduas que a corrida leve, mas não irritam o coração, porque não perdemos fôlego e nossos batimentos cardíacos são mantidos no mesmo padrão rítmico o tempo todo. Por isso, quando ensinamos àsanas, temos de descobrir o que é efetivamente revigorante e o que não é. Depois de um exercício revigorante não existe absolutamente qualquer fadiga. Sentir-se bem depois de exercitar-se bastante quer dizer que o trabalho foi revigorante, mas sentir-se exausto depois de dez ou quinze minutos é um sinal seguro de que você está fazendo exercícios irritativos.

Isso também vale para o ioga. Por exemplo, suponhamos que eu veja um dos meus alunos ensinando uma postura como ardha-chandrasana, de maneira irritativa, com um esforço tremendo, uma carga tremenda, um uso tremendo das fibras. É isso que chamo de maneira irritativa de fazer ioga. O que faço? Interrompo e ensino a mesma postura para que seja revigorante.

Sabendo muito bem que cada um dos alunos tem seus defeitos ou transtornos físicos, o professor deve tentar estimular as áreas afetadas, e não irritá-las. Ensinar ioga é muito simples, mas não o é ensinar ioga do jeito certo. Embora todos os alunos tenham a mesma estrutura de músculos, articulações e tendões, essa estrutura pode estar perturbada em decorrência de desequilíbrios psicofisiológicos, oriundos dos hábitos individuais de uso, e o professor deve levar em conta essas perturbações. Às vezes, em salas com muitos alunos, é necessário selecionar as pessoas mais fracas e dar-lhes àsanas diferentes, ou dedicar-lhes atenção especial, para que não ocorram lesões.


Voltando ao exemplo do aluno com problema cardíaco: o músculo do coração está num saco no centro do lado esquerdo.

Quando esse saco se rompe, significa que ocorreu uma dilatação do coração, e que podem ser esperadas doenças cardíacas.

Quando ensinamos posturas como setu-bandha-sarvangasana e viparita-karani, recolocamos o saco cardíaco em sua posição original. Mas quando os braços são levantados, o coração é deslocado de sua posição normal. Sempre advertimos os alunos que têm problemas cardíacos a não fazer essas posturas, pois elas representam pressão para o coração.

Também não lhes ensinamos equilibrar-se sobre a cabeça, porque o sangue corre muito depressa, e, ao suspender as pernas para a execução da postura, a tendência é segurar a respiração. A espinha cardíaca sustenta os músculos do coração, e por isso os músculos de sustentação do coração de pacientes cardíacos, situados nas costas, precisam ser exercitados e tonificados. Considere o que acontece depois de um terremoto. O ataque cardíaco é como um terremoto para o coração. O que acontece com a terra durante vários dias após o abalo inicial?

Os tremores continuam à medida que a terra, vagarosamente, vai se assentando. Não ocorre um segundo terremoto, mas os tremores prosseguem enquanto a terra está se acomodando em seu novo lugar. Situação semelhante ocorre depois de um ataque cardíaco. Após o abalo, os tremores continuam enquanto o coração está buscando seu novo nível. Depois do ataque, os músculos que protegem o coração endurecem - as fibras dos músculos de proteção tornam-se muito tensas. Os tremores continuam ocorrendo dentro do coração porque os músculos trabaIharam bastante para protegê-lo. Portanto, esses músculos precisam ser relaxados. Administramos posturas que relaxam esses músculos, tornando-os mais macios e mais soltos. Caso ocorra um segundo ataque, os músculos suportarão o esforço, porque já estão relaxados. Se a pessoa com esse histórico for levada a realizar o exercício de equilíbrio sobre a cabeça, os músculos, que já estão supertensos, ficarão ainda mais enrijecidos para assegurar o equilíbrio. Vocês sabem o que pode acontecer.

Relatei esse caso para dar um exemplo de como deve ser abordada a prática dos asanas no caso de pessoas com transtornos físicos. Não se justifica correr riscos desnecessários. Se outros agem assim, que assumam a responsabilidade pelo que estão fazendo, mas vocês não o farão. É melhor relaxar os músculos simplesmente e usar almofadas para que eles se deitem e façam savasana, com um pranayama simples, e isso basta.

Outra palavra de cautela que se aplica a todas as mulheres que praticam ioga: é sempre aconselhável evitar a prática das posturas inversas durante o período menstrual. Esse é o período menstrual de expelir, e se a menstruação não acontece de maneira apropriada, pouco ou muito fluxo, procura-se um médico para tratamento. Se você fizer posturas inversas durante o período menstrual, a tendência é absorver em vez de expelir. Se a descarga é bloqueada por posturas inversas, isso pode ocasionar a formação de coágulos. No início, você pode não perceber grandes diferenças, mas, como resultado da retenção pelo efeito da gravidade, podem-se formar coágulos que, mais tarde, levarão a várias doenças, incluindo cistos, câncer e outros problemas. Portanto, é prudente não realizar essas posturas nessa época. Para essa fase, são recomendadas flexões para a frente, nas quais não há qualquer perturbação da descarga. Nessa posturas, o fluxo natural é mantido e, ao mesmo tempo, ocorre uma contração fisiológica no órgão que acelera o processo de escoamento.

[...]

Por fim, gostaria de aconselhar prudência aos professores que querem se submeter a práticas que viram outros realizando, em contextos específicos. Vamos supor que alguém vem assistir a uma aula que se destina a mulheres no sexto mês de gestação. Ele vê o que estou fazendo e diz: "Esse ioga é bom!", e vai embora achando que sabe trabalhar com gestantes. Ele não viu como trabalhei no terceiro mês e como será a aula até o nono. Não sabe que tenho maneiras diferentes de trabalhar em cada mês, e vai embora pensando que, porque me viu ensinando certas posturas para grávidas, já sabe como fazer.

Dei o exemplo de uma aula para gestantes como poderia ter dado outros. Vejamos um: perguntaram-me se eu recomendaria posturas inversas para portadores de glaucoma. Tenho pacientes com glaucoma que fazem as posturas invertidas, mas isso não significa que posso recomendar a prática. Se uso essas posturas, é porque sei como levar um aluno a realizá-las.

Se a pessoa com glaucoma faz o exercício de equilíbrio sobre a cabeça, a pressão aumenta. É preciso aprender como os globos oculares devem ficar, como os ouvidos devem ficar, como deve ser a respiração. Se, como um médico, eu fosse prescrever essas posturas para pessoas com glaucoma, alguém poderia imediatamente dizer: "Quero servir a humanidade, portanto vou ensinar posturas invertidas para essas pessoas". Aconteceu exatamente isso há alguns anos.

Em Puna, dou aulas para pessoas com glaucoma e até com descolamento de retina. Já tive alguns alunos cuja retina não estava muito seriamente descolada, e por isso não fico nervoso diante de um caso desses. Se um paciente é informado de que sua retina ficará descolada, posso salvá-lo disso.

Como sou "gato escaldado", tomo muito cuidado. Há alguns anos, quando ensinava equilíbrio sobre a cabeça para algumas pessoas com glaucoma, um homem que não sofria do mal entrou na turma. Tempos depois, escreveu-me uma carta, em que dizia: "Depois de vê-lo ensinando o equilíbrio sobre a ca beça para pessoas com glaucoma, passei a dar esse tipo de aula, e meus alunos estão obtendo melhoras. Poderia me dizer o que mais eu deveria ensinar?". Fiquei furioso. O que posso fazer se essas coisas continuarem a acontecer? Fico muito preocupado em recomendar exercícios para problemas físicos, porque muitas pessoas podem dizer: "Vou ensinar isso também'.

O importante, no entanto, é como é ensinado. Se você não sabe, não faça.

Isso serve não só para o equilíbrio sobre a cabeça, mas para muitos outros asanas que podem pressionar os olhos. Não faça se não sabe. É perigoso. Nesse caso, faça só as flexões para a frente. Isso pode ser ensinado sem risco algum. Eu me sinto seguro, você se sente seguro, e os que fizerem essas posturas também .


Livro: A Àrvore do Ioga

Titulo original: The Tree of Yoga

Autor: B.K.S. Iyengar

Traducao: Maria Silvia Mourão Netto

Editado por Daniel Rivers-Moore

Editora Globo

 

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